28 de jul. de 2009

O primeiro banho no leito

No primeiro estágio, na ortopedia infantil, a professora mal terminava de perguntar “quem quer...” e eu já respondia “eu vou”. Queria mostrar que tenho iniciativa. Foi assim que acabei dando minha primeira assistência em uma das tarefas mais difíceis e rotineiras na enfermagem: o banho no leito.

O garoto de 15 anos, portador de malformação congênita, sentia muita dor ao ser manipulado. Éramos seis pessoas em volta da cama dele: três auxiliares de enfermagem, a professora e duas alunas/estagiárias. O problema deste paciente afetava o bom funcionamento de seus pulmões e do coração, o obrigando a manter eletrodos na parte superior do tórax, acesso venoso no antebraço e
dispositivo urinário no órgão genital. E ele precisava tomar banho. E não podia receber nenhuma friagem.

Diante deste quadro minha tensão só aumentou, todo cuidado ali era pouco. Mas eu estava aprendendo e, com orientação e supervisão, não havia o que temer. Quando a professora me encorajou dizendo “pode esfregar a esponja nas costas dele”, ao pressionar a pele do garoto ele deu um grito! Afastei a esponja na hora, de susto, achando que tinha feito algo muito errado. Todas olhamos para ele e depois olharam para mim. A professora pediu para eu continuar, obedeci, e o paciente não gritou mais.

Como mecanismo de defesa, o garoto acostumou-se a gemer. E usou sua arma contra uma estudante inexperiente. Depois de realizado o procedimento fiquei pensando no esforço e no sofrimento dele em uma hora que deveria lhe trazer alívio, não dor. Quando estava lavando as mãos, a professora flagrou-me chorando e disse “essa é uma das prova de fogo na enfermagem, minha primeira vez também não foi fácil”.

Caros(as) leitores(as),

gostaria de comunicar que todas as situações descritas aqui neste blog são verídicas, baseadas em minhas vivências, lembranças e anotações pessoais feitas durante o período de estágio nos hospitais.

Quero informar também que as ações dentro do hospital e os procedimentos realizados nos pacientes que exijam o uso de EPI (equipamento de proteção individual) e PP (precaução padrão) estarão subentendidos nos textos.

20 de jul. de 2009

Estágios

Tive meu primeiro contato real com a rotina hospitalar atuando como estagiária. A professora, que precisa ser uma enfermeira, explanava e apresentava detalhadamente toda a unidade: recepção, copa, rouparia, sala dos médicos, sala da enfermagem, posto de enfermagem, farmácia ou CAM (Centro de Abastecimento de Materiais e Medicamentos), enfermarias/quartos, expurgo, banheiros etc. Orientados quanto à postura, ética, respeito e responsabilidades, nós - alunos/estagiários - estávamos mais do que apreensivos e ansiosos em atender e interagir logo com um paciente.

Aliás, nos ensinaram que o paciente virou "cliente" e assim ele dever ser chamado. O argumento é que a pessoa hospitalizada está contratando os serviços do estabelecimento e do médico. Ela paga por tudo aquilo, tanto no atendimento público quanto no particular. Who am I to disagree?!
(Eurythmics). Mas torço o nariz para isso porque paciente precisa, de fato, ter paciência. E paciência é sinônimo de espera. Espera pelo atendimento, pela chamada, pela entrada, pela internação. Espera pela maca, pelo desjejum, pela enfermagem, pelo médico. Espera pelo resultado do exame, pela radiografia, pela alta, por tudo. O que um internado mais faz é esperar. E esta realidade vai mudar porque passaremos a tratá-lo como "cliente"?. O termo remete a uma ideia de assiduidade que até pode ser verdade (infelizmente, devido aos inúmeros retornos ao hospital), mas que está longe do propósito do ser humano doente que quer recuperar sua saúde e não contratar serviços. Quem é que quer ficar voltando ao hospital como se fosse um habitué?. Disseram que é preciso mudar esta relação entre médico e doente, tornando este menos passivo. E mais comercial, claro. Na minha opinião, esta é uma forma negativa e enganosa de lidar com o hospitalizado. "Clientes" talvez sejam melhor atendidos em hospitais particulares e, ainda assim, também esperam.

Mas, voltando!

No estágio, ou ficávamos na medicação ou nos cuidados e havia um revezamento de alunos no atendimento. Depois de conhecermos o centro de materiais esterelizados, estagiamos nas unidades de ortopedia e traumatologia infantil e adulto, geriatria, oftalmo, otorrino, centro cirúrgico, pronto-socorro infantil e adulto, obstetrícia, pediatria e até em albergue que recebe pessoas em situação de rua. Trabalhamos muito! De limpeza concorrente à terminal, de banho no leito a curativos, de realização de medicação às anotações de enfermagem, de organização de gavetas à passagem de plantão. Meu critério pessoal era o seguinte: se eu saísse descabelada e suada é porque aquele lugar estava rendendo bons aprendizados.

Trabalhar na "área da doença" é um ato de bravura. Quero agradecer, sinceramente, às equipes de enfermagem dos hospitais. Estes profissionais merecem respeito e compreensão (nós merecemos!). Agradeço a cada um que teve a gentileza de me "mostrar como se faz", mesmo não estando em um bom dia. Espero agir como vocês, quando chegar a minha vez.

9 de jul. de 2009

Para poder continuar...

Um fato importante precisa ser registrado aqui porque a cena mexeu muito comigo. Há uns quatro anos, eu estava no interior com meus familiares e uma prima estava acamada em sua casa, em fase terminal, moribunda. Durante 24hs, ficamos ao lado dela, dando a assistência necessária. Eu, no que pude ajudar, massageei os pés frios dela, enquanto ela ainda estava consciente. Uma movimentação grande de mulheres religiosas preparavam-na para a chegada da morte. Apesar de parecer sombrio, eu via poesia. O tratamento dado, o significado dos atos e as providências me comoviam. Foi ali que vi, pela primeira vez, um banho no leito. Perguntei a minha tia "mas, por qual razão precisa dar banho nela, neste momento?". Minha tia respondeu "e ela precisa ir embora suja? não, ela vai embora limpinha, pra chegar onde for de banho tomado". Fiquei calada, pensando. Houve uma hora na qual minha prima parecia bem. Estava sorrindo, os olhos avivaram, falava bastante. Pensei, "ela não vai morrer! pelo menos, não hoje!". Mas faleceu horas depois. Novamente, perguntei "ela tinha ficado boa! o que aconteceu, tia?". "Ela recebeu só uma visita da saúde", esclareceu. Fiquei mal, triste e reflexiva durante semanas. Acompanhar o processo agonizante e o último suspiro de um parente é dolorido, mas presenciar isso foi algo realmente transformador.

Acho que agora, depois de ordenar os acontecimentos na minha cabeça e tentar clarear a sua, posso começar a contar as histórias.

8 de jul. de 2009

Aproximação

Para descobrir onde seria melhor estudar, realizei uma pesquisa grande. Visitei hospitais, conversei com enfermeiros, liguei em escolas. A primeira coisa que aprendi foi a hierarquia: auxiliar de enfermagem, técnico em enfermagem e o enfermeiro. Sempre explicava que queria estar perto do paciente, tendo contado direto, e que não queria liderar nada nem comandar ninguém. O profissional auxiliar é o peão, assim me disseram. Ele faz de tudo, do sujo ao pesado. E, "às vezes, sabe mais que o médico por causa da prática", me alertaram. Uma técnica em enfermagem indicou-me uma escola fundada pelo grupo de freiras que educaram minha mãe no interior de São Paulo. Obviamente, fui conhecer esta escola. A irmã-diretora me recebeu com tanta alegria que ela convenceu-me a fazer a matrícula. As aulas começariam dali uma semana! Desconhecia totalmente a legislação do ensino de enfermagem, os estágios obrigatórios, a carga horária mínima. A irmã-diretora disse "saindo daqui, você terá portas abertas em qualquer lugar e, com sua formação, você vai querer fazer a faculdade de enfermagem, não é?". Dei um sorrisão.

Eu não pensava e nem penso em ser enfermeira. Fiquei sabendo que, atualmente, o enfermeiro está cada vez mais distante do paciente. Ele fica cuidando da administração, burocracias, parte operacional, manutenção do setor, abastecimento da unidade, registros de lotes. Não, não era isso que eu queria. Outro dia, me explicaram que não era bem assim, que dependia do tipo de enfermagem que eu iria focar. O fato é que nem atuando como auxiliar de enfermagem estou! Então, "viola no saco".

Meus colegas de sala eram manicures, donas de casa, cabeleireiras, empregadas domésticas, motoboys, carregadores, atendentes e estudantes saídos do ensino médio interessados na rapidez da profissão técnica. Eu era a única "diferentona" ali. E sofri com hostilidade e preconceito. Naturalmente, me defendia. E nem sempre fui diplomática porque meu 'pulso ainda pulsa' (Arnaldo Antunes). Identificar-me com alguém foi difícil, mas mantive uns cinco ou seis colegas durante os 12 meses de curso. No começo, éramos 27. Terminamos com 19 alunos.

Fui uma aluna muito acima da média na parte teórica. Dez, nove, às vezes, um oito. Nos estágios, aluno nenhum podia ganhar nota alta. Essa era a regra porque estávamos todos aprendendo juntos. Dei mancadas, como todos, e - mesmo assim - continuei acima da média e me destaquei com os pacientes. E era isso que me interessava ali. Mesmo diante daquele cenário, lidando com doenças, eu estava tão animada de estagiar nos hospitais que, mais do que fazer bonito para as professoras, eu queria ganhar a confiança do doente. Além do que a escola e os estágios ensinam, e que é fundamental como proteção, segurança, responsabilidade, carinho, humanidade e respeito, percebi que é possível realizar os cuidados de enfermagem com personalidade.

6 de jul. de 2009

Intro

Perguntaram-me se tive a peia do Daime ou se enlouqueci mesmo. Esta mudança repentina de área (da arte e comunicação para a saúde) aconteceu de uma semana para outra. Um dia, acordei querendo trabalhar com enfermagem. Mas, pensando bem, isso estava dentro de mim há tempos e só fui entender depois de me aproximar da área de saúde. A partir de agora, para poder dar início às histórias que já vivi nos hospitais e das que estão por vir, tentarei resumir a passagem entre o processo de mudança e minha formatura como, por enquanto, auxiliar de enfermagem.

De 1998 a 2008, sobrevivi do meu trabalho como assessora de imprensa. No começo do ano passado, estava me sentindo cansada de viver de forma autônoma e sem estabilidade. Naquele mesmo momento, meu "namorido" (hoje, ex) comentou sua insatisfação com o emprego fixo, dizendo que estava infeliz na função que desempenhava e pensava em pedir demissão. Ao apoiá-lo, entendi que precisaria realizar alguma grande mudança. Os dois atuando como profissionais liberais (clandestinos), sem conseguir fazer planejamentos (devido à instabilidade financeira) e a falta de vagas para trabalhos fixos no mercado (em nossas áreas) prenunciavam que, sozinhos ou juntos, não iríamos construir grandes coisas. Foi aí que tive um pensamento que iluminou minha mente de forma a gerar um grande e renovado entusiasmo em minha vida: vou estudar enfermagem. Lembro do alívio e da alegria que senti ao ter a clareza e a consciência do que estava desejando. E também fiquei refletindo sobre como as coisas acontecem em nossas vidas.

Desde pequena, apesar de achar o universo das ciências biológicas interessante, não havia nada em meu histórico familiar que apontasse para este caminho. Fui ser atriz, por influência de minha irmã mais velha; locutora, por causa dos colegas e amigos; e fui ser jornalista, por influência de meu pai (♫ parafraseando Nando Reis). A enfermagem entrou na minha vida por uma escolha exclusivamente minha. Sem indicação de ninguém. Talvez, o trabalho assistencial realizado pela minha mãe - como policial feminina - tenha deixado alguma base elementar. O fato é que ao fazer minha nova opção, comecei a enxergar e compreender os pequenos sinais que passaram por mim, mas que fui ignorando durante minha vida.

Quando criança, lembro que o ambiente hospitalar fazia parte de minha rotina porque meu pai estava sempre indo parar no hospital por conta de sua saúde debilitada. Lembro também da facilidade que eu tinha em lidar com cortes e curativos. Para mim, não era esforço nem sacrifício usar o merthiolate vermelho e ardido nos machucados. Eu gostava de exibir um band-aid no corpo e a coleção de hematomas nas canelas também. Lembro, sobretudo, de meus amiguinhos estropiados por suas bicicross e carrinhos de rolimã. Foi algo fascinante quando usei, pela primeira vez, água oxigenada em um ferimento. O efeito era muito legal. Nunca tive nojo nem aflição. Sangue também não me perturbava. Eu gostava mesmo de tratar o ferimento e cuidar da pessoa.

Na rua, no colégio, na faculdade, me aproximava de quem caía no chão e observava se podia ajudar. Apesar de perigosa, esta iniciativa nunca me intimidou e dei assistência correta, por instinto, de epilético a atropelada. Também sempre me preocupei em manter atualizada e bem guardada minha carteira de vacinação. Nem sabia por quê. Considerava um documento tão importante que conservei até hoje. Quando comecei a estudar enfermagem, a professora - no primeiro dia de aula - disse exatamente assim "o profissional de saúde precisar estar sempre com sua carteira de vacinação íntegra e em dia". Para mim, aquilo foi como uma confirmação do "chamado de Deus". E comecei a me sentir ainda mais à vontade com a novidade em minha vida.

Agradeço ao meu amigo Cauê Procópio (músico), ao meu amigo Ismael Caneppele (escritor) e a minha prima de segundo grau Alessandra Ribeiro Hernandes (anestesiologista), pelo estímulo para eu abrir um blog.