23 de abr. de 2010

Realmente cômico

Era o primeiro atendimento de enfermagem ao Sr. Israel (nome trocado), um senhor de 65 anos, magro, estatura baixa, nariz adunco, barba por fazer, semicalvo e desaparelhado de todos os dentes. O corpo, inquieto, exalava um constante e marcante odor senil. Ex-alcoolista, queria agora se livrar da dependência da maconha. Só consegue dormir se usar a erva.

No primeiro momento do atendimento, formalidades. É perguntado onde mora, com quem e o que faz, por exemplo. Sr. Israel valoriza as respostas, floreando-as, "moro há 65 anos aqui! todo mundo gosta de mim!". Depois, é perguntado sobre os vícios, tratamentos, internações, "nunca entrei em um hospital!". Certo, certo.

Ele é também tabagista, apresenta tosse produtiva, problemas precoces na audição, na visão, a memória falha várias vezes e não faz exames laboratoriais há tempos. Só após muita conversa é que se revelou um pouco, além do evidente desleixo pessoal, digno de nota. A enfermeira me incumbe de abordar esta questão e tento encontrar as motivações dele para não se cuidar um pouco mais:

- Sr. Israel, e banho?
- Que é que tem?
- O sr. toma?
- Tomo.
- Quando foi a última vez?
- Ah, não! Banho de chuveiro, assim? Não, não...
- Não, não?
- Não. Meu banho é de chuva.
- De chuva?
- É. Com a água da chuva. Natural.
- Mas como o sr. tira a sujeira e a gordura do corpo no banho de chuva?

- Esfregando com a mão.
- E o sabonete, Sr. Israel?
- Sabonete? Nunca mais eu uso sabonete! Foi o sabonete que me deixou assim, ó! (Aponta para a parte de cima da cabeça e gira o dedo onde está a careca)
- Sr. Israel, pelo amor de Deus, o banho com sabonete é importante!
- Só com água da chuva e sem sabonete.
- E se for sabão de coco?
- Vou pensar. Sabão de coco é bom.
- E os dentes, Sr. Israel? O que acontec...
- Mandei arrancar tudo!
- Mandou arrancar tudo? Por quê?
- Ah, dava muito trabalho, eu sentia dor...
- E os alimentos, Sr. Israel? O sr. não pensou nisso, na mastigação?
- Não tenho problema nenhum. Vou chupando, amassando. Como tudo bem amassadinho.
- Sr. Israel, não pode...
- 'Tô bem melhor assim.
- Sabia que o seu emagrecimento pode ter sido causado pela falta dos dentes? O sr. nem pensa em providenciar próteses dentárias?
- O quê? Dente pra quê? Pra ficar sorrindo? Ai, ai... Me filma que 'tô sorrindo!

Após as orientações, as condutas e os agendamentos, Sr. Israel explica que nunca lhe faltou dinheiro e me mostrou várias notas de R$ 20. Desenhou o perfil de meu rosto no papel, me presenteou e foi embora, dizendo que iria se encontrar com a namorada (!).

Parece cômico...

É rara a necessidade de minha ajuda na recepção do CAPS. Mas, às vezes, dou uma força. Nestes momentos, acontecem diálogos como este:

- Oi. (paciente chegando)
- Oi, bom dia. (eu)
- O médico.
- Qual médico, por favor?
- Não sei.
- Você já é paciente daqui?
- Acho que já.
- Empresta aquele cartão do CAPS, por favor.
- Que cartão?
- Aquele cartãozinho branco, de agendamentos.
- Ah, perdi.
- E o do SUS?
- 'Tava junto quando perdi o outro.
- Tudo bem. Você veio por qual razão?
- Pra ver o médico.
- Entendi. E você está se sentindo mal agora? Ou é uma consulta?
- Não.
- Não está se sentindo mal?
- Não.
- E você não lembra se tem consulta?
- Não.
- Tudo bem. Você veio falar com o clínico ou o psiquiatra?
- Não lembro.
- Qual seu nome? (Silêncio). O seu documento de R.G. não está aí com você não, né?
- Não.
- Como você se chama?
- É... é... Antônio. (nome trocado)
- Antônio, por favor, me dá seu sobrenome pra eu encontrar seu cadastro aqui no CAPS e descobrir sua situação conosco.
- É... é...

10 de abr. de 2010

Notas importantes (saúde mental)

  • Em psiquiatria, o alcoólatra é um adorador do álcool, e não - necessariamente - um viciado; a este se dá o nome de alcoolista, que faz uso abusivo da substância. E drogado é um termo depreciativo, assim como viciado; quem usa múltiplas drogas é usuário ou dependente. Aprendi a usar também o termo tabagista, mais preciso que fumante.
  • Outra elucidação, resumidamente, é sobre a escala de envolvimento e continuidade: uso experimental (curiosidade, aproximação e conhecimento); uso recreacional (eventual, de ocasião, socialmente); uso abusivo (padrões problemáticos na vida pessoal, familiar e social, vício); e dependência química (física ou psíquica, o usuário possui sintomas de abstinência quando não usa).

Prova de fogo

Vantagens do novo emprego: caminho fora do fluxo, meio período, esforço somente mental, aproximação com a prática psiquiátrica e pouco procedimento (basicamente sinais vitais). Desvantagens: trabalhar com o sistema do funcionalismo público (há uma integração entre OS e prefeitura), atender pacientes alterados pelo álcool ou drogas, lidar com casos recorrentes e o preconceito comigo. Sim, preconceito comigo e explico (já falei superficialmente aqui sobre isso).

Iniciar nova carreira em uma determinada (elevada) altura da vida é algo curioso e entendo que queiram saber minhas motivações ou sobre o que eu fazia antes para sobreviver e não escondo. No curso de auxiliar de enfermagem, me perguntavam "você fazia o quê?", respondia, "sou jornalista, trabalhava como assessora de imprensa". Mas é aí que me torno alvo de discriminação e o que era dúvida vira julgamento: "ela já tem superior!", "está tomando o lugar e a vez de quem está tentando". Eram estes tipos de comentários que chegavam para mim. E esta reação não foi diferente no curso técnico em enfermagem, ("jornalista? devia estar na televisão!", "ela não conseguiu se sustentar como jornalista?"). Nem no primeiro trabalho consegui me livrar do preconceito ("será que é uma informante?", "o quê tanto ela escreve naquele bloco?").

No início do trabalho, eu anotava tudo para assimilar mais rapidamente tanta informação nova. A maioria dos colegas não me dava confiança e os pacientes me faziam "de gato e sapato" porque os atendia com excesso de zelo. Eu ainda não conhecia suas possíveis artimanhas e manipulações!

Foram 90 dias tensos de experiência, uma verdadeira prova de fogo (sem trocadilho com o estado dos bebuns!). Uma amiga querida, a Norma, me disse "Cinira, trabalhar em repartição pública vai ser ótimo para sua ingenuidade crônica".

Assim, espero!

3 de abr. de 2010

Primeiro emprego na área de saúde

Depois de tantos contatos realizados, tantos currículos enviados, tantas ideias trocadas, uma organização social me chamou, em setembro de 2009, para uma entrevista de emprego. Para quem não sabe, organização social é o nome que se dá quando o governo autoriza que uma entidade privada, sem fins lucrativos, receba determinados benefícios do poder público para a realização dos interesses da comunidade. Ou seja, as OS's vieram para dar uma "moralizada" na gestão pública, organizando onde predomina o caos, e já é uma tendência em todos os setores das instituições, apesar de inconstitucional. As atividades das OS's são públicas, divulgadas no Diário Oficial, etc.

Passei em todas as fases da seleção: análise de currículo, prova escrita, entrevista individual e dinâmica de grupo. A OS precisava de auxiliares de enfermagem para atuarem na atenção básica de saúde da prefeitura de São Paulo, como a AMA (Assistência Médica Ambulatorial), a UBS (Unidade Básica de Saúde) e o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). De todos, desconhecia o CAPS. Orgulhosa e radiante, só aguardava as coordenadas para saber onde exatamente eu iria trabalhar.

O RH da organização social me comunica que trabalharei no CAPS-AD (AD?) e que era para eu estar em determinado lugar para o processo de integração (momento de boas vindas, reconhecimento do local de trabalho, esclarecimentos, tirar as dúvidas, etc). Ok, mas mal sabia o que era CAPS, quanto mais "AD" e perguntei, "CAPS-AD?". Responderam, "sim, de acordo com seus resultados nas avaliações e seu perfil psicológico, reconhecemos que, inicialmente, você desempenhará um bom trabalho no CAPS-AD". "Fico feliz e estou muito entusiasmada para começar, mas o que significa o AD?", insisti. "Você vai trabalhar no tratamento e recuperação de usuários de álcool e drogas em geral. Você vai trabalhar na área de saúde mental".

A de álcool e D de drogas...
Toda minha alegria foi atingida por um balde de água gelada. Saúde mental? Eu queria fazer procedimentos invasivos! Cuidar de alcoólatras e drogados? Iria fazer o quê com eles? Quem me conhece, compreende bem minha decepção. Cresci (e sofro até hoje) com problemas de alcoolismo na família, entre outras coisas. Isso só podia ser praga... Ou, justamente por conviver com isso, minha experiência pessoal apareceu de alguma forma positiva na análise de meu perfil.

O que me animou novamente foi lembrar de ter conseguido um emprego de 30hs semanais com um salário justo, após três meses de conclusão do curso de auxiliar de enfermagem. Para quem não tinha um tostão no bolso há quase um ano, era a glória. E, verdade seja dita, estava indo para uma área bastante - digamos - familiar.

Retomando

Caros(as) leitores(as),

após um intervalo de pouco mais de seis meses, retorno ao blog para contar sobre meu novo trabalho, o novo curso que iniciei e relatar novas histórias.


Quero agradecer pelo interesse dos(as) amigos(as) que aguardavam pela atualização deste blog e a você, leitor(a), pela paciência.


Boa leitura.