2 de set. de 2009

Enferma idade

Nosso estágio no hospital geriátrico foi o mais triste. Uma dura realidade é vista ali: muitos familiares abandonam seus idosos. São senhores e senhoras, a maioria acima de 70 anos, de todos os tipos, humores e enfermidades. Amarelos, brancos, pretos e acho que um deles era descendente direto de um vermelho. Rabugentos, festivos, dóceis, soturnos... Alzheimer, acidente vascular cerebral, câncer, diabetes, hipertensão, problemas digestivos e estomacais... Grande parte dos internados é paciente acamado que necessita de cuidados especiais e intensivos. Muitos deles não esperam mais nada, além da morte. Diante desta premissa, tudo o que é feito ou dito, precisa ser pensado antes de executar ou proferir. Estávamos lidando com adultos experientes que, mesmo adoecidos, sabiam se defender muito bem.

Lição 1 – Como estudantes de enfermagem, aprendemos – logo no início do curso – que não se pergunta se o paciente “está bem” ou se "está tudo bem" (está subentendida a razão). Inocentemente, minha colega se aproxima da paciente idosa e pergunta “como vai, a senhora está bem?”. A resposta veio assim “como posso estar bem, minha filha, tenho câncer”.

Lição 2 – A auxiliar de enfermagem do hospital, solícita e simpática, se senta no braço da poltrona onde está acomodado o idoso e começa a tagarelar. Mas ela logo fica sem graça quando ele diz “ô filha, sai daí que você é muito pesada”.

Lição 3 – É preciso checar e confirmar quase tudo que um paciente de hospital geriátrico diz. Eles se aproveitam da disposição dos estagiários e pedem coisas que já foram fornecidas, por exemplo, café da manhã. E a boa vontade pode gerar riscos, já que alguns pacientes possuem uma dieta balanceada e fracionada. Ao confirmarmos perguntando “já tomou café, não é, senhor(a)?”, a resposta piedosa mais usada é “ninguém me deu nada ainda, filha”.

Lição 4 – Quando for caso de banho de aspersão, desconfie (principalmente dos homens) da resposta ao querer checar “já tomou banho, senhor(a)?”.

Lição 5 – Quando chegamos para estagiar no hospital geriátrico, a enfermeira de plantão nos passou o histórico dos pacientes e comunicou “e o Sr. Irineu (nome trocado) que está acamado por complicações renais, talvez entre em isolamento de contato devido a uma bactéria ainda inespecificada e precisa trocar três grandes curativos. E ele é lúcido e agressivo”. Ok.

Eu e uma colega fomos solicitadas para cuidar do Sr. Irineu somente no último dia do estágio. E, até então, já tínhamos ouvido muito sobre ele: que não colaborava, que era nervoso, que xingava, empurrava, falava alto e não estava nem aí. Ele era temido porque era grosseiro. Sabíamos (ou achávamos que sabíamos) o que nos aguardava. Para mim, o primeiro pensamento foi que - além da situação vulnerável na qual ele se encontrava - ainda tinha de lidar com novatos mexendo nele todos os dias. Então, com esta empatia, fui cuidar do famigerado Sr. Irineu.

Ao entrar no quarto dele, dando bom dia e me apresentando toda faceira, ele adiantou - mal olhando na minha cara - “já vieram verificar meus sinais vitais às 7h e agora estou aguardando o café”. Ok. Respeitei, mas não podíamos cruzar os braços. Após algumas pequenas ofensas gratuitas, achei por bem solidarizar-me, “Sr. Irineu, imagino que não seja fácil ter de aguentar cada dia uma pessoa diferente vindo cuidar do senhor e também sei que esta rotina é maçante e que...”, sendo interrompida por ele, ouvi “maçante... nem sabe o que fala”. Ok. Saí do quarto com minha colega que perguntou “e agora? Como é que a gente vai trocar os curativos dele?”.

Voltamos ao quarto e ele estava tomando café. “Sr. Irineu, após o seu café, nós vamos lhe dar o banho e realizar a troca de seus curativos, combinado?”, ele disse “já terminei, podemos começar”. Ok. Iniciamos o banho no leito e ele reclamava de tudo: da demora, da água, da esponja, do sabonete... Xingava, dizendo “mas que merda, deixa que eu faço, vocês não sabem fazer nada”. E, com gestos bruscos, ele arrancava os objetos de nossas mãos. O Sr. Irineu simplesmente não deixava que fizéssemos os cuidados. Queria fazer tudo sozinho sem ter condições totais para isso. E implicou, principalmente, comigo. Não queria que eu mexesse nele mais. Ficava louco da vida quando eu usava palavras “difíceis”, como quando pedi "por favor, o senhor está sendo intransigente". Ele dizia "cala sua boca, você nem sabe o que fala!".

Tentei inverter a situação passando a me interessar em saber quem ele era. “Sr. Irineu, qual sua profissão?”, imediatamente respondeu, “fui um comerciante muito rico e bonito, sempre lidei com gente da alta, conheço pessoas importantes”. Ok. No momento da troca dos curativos de sua úlcera de pressão (escara) na região sacral (lombar e cóccix), ele estava lateralizado na cama e, totalmente transtornado, vociferou “acaba logo com isso, está demorando demais hein, vou virar e você não vai terminar!”. Ainda tínhamos de realizar os curativos dos calcâneos. Depois desta ameaça dele, morri de medo de não conseguir fechar a lesão. Parei, respirei fundo, olhei por cima dos ombros dele, avistei seus olhos e falei “Sr. Irineu, por favor. Ninguém está aqui para piorar sua situação. Tudo o que o senhor fez até agora foi reclamar e isto está atrasando o senhor e a nós também. O senhor está me dando uma oportunidade única e preciosa de aprendizado e gostaria muito de finalizar este procedimento prudentemente, com calma e de forma correta, para sua melhor recuperação e alívio”. Ferozmente, ele disse “que recuperar o quê, vai aprender em outro”. Ok. Em um clima de tensão, suando feito um gambá, tentando manipular rapidamente naquela posição desconfortável, finalizei o curativo. Terminado também os dos pés, eu e minha colega saímos do quarto nos olhando em um silêncio pesado. Eu estava descomposta.

Naquele mesmo dia, continuando nossa jornada, andando pelo corredor do hospital, ouço de um quarto, “psiu, vem aqui!”. Era o Sr. Irineu me chamando. Entrei e perguntei, plangente, "precisa de algo, Sr. Irineu?”. “Troque estas pilhas do meu rádio”, ele ordenou. Enquanto, complacentemente, o atendia, me disse “você é muito inteligente". E perguntou, "por que está estudando para ser auxiliar de enfermagem, depois de velha?”. Respondi, “longa história, Sr. Irineu, e depois ainda vou fazer o técnico. Mas sou jornalista. E tenho 35 anos”. Entreguei o rádio com as pilhas novas a ele. “Veja se está bom”, eu disse. “Ah, agora sim. Eu gosto muito da CBN, você conhece a CBN?”, ele perguntou. “Sim, a rádio que toca notícia”. Quando respondi esta, ele sorriu.

Finalmente, na hora de ir embora do hospital geriátrico, após me despedir de todos, fui até o Sr. Irineu. “Tudo sob controle por aqui?” e ele respondeu que sim. Ao me despedir, desejando bons auspícios, o Sr. Irineu me interrompe e diz “filha, você me desculpe alguma coisa, viu... não fiz nada por mal... desejo que você tenha uma bela nova carreira”. Meus olhos se encheram de lágrimas. Pedi desculpas também, agradeci e saí. Chorando, contei à professora que havia recebido um pedido de desculpas do Sr. Irineu, afinal - naquele contexto - isso era uma façanha. E esta foi a lição: sua inteligência é seu tesouro.

6 comentários:

Nando disse...

Muito legais as lições e principalmente S. Irineu. As pessoas trazem com elas alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, e nunca sabemos em que proporção um lado foi mais forte que o outro. Mas com o tempo podemos ver que ali existe um ser humano, como nós!
Experiência de vida conta muito!!!

C. Fiuza disse...

Beleze querido, meu assíduo leitor n°1!
Verdade, experiência de vida conta. E não dá para subestimar isso.
Um beijo.

Annix disse...

sensacional! muito tocante.
:-**

C. Fiuza disse...

Valeu pela visita, Annix! ;-)

Denis disse...

Parabéns Cinira! Sua sensibilidade e espontaneidade são muito inspiradores! Beijos! Você É maravilhosa!

C. Fiuza disse...

Obrigada, Denis querido! Seu comprometimento tb é inspirador, viu. Parabéns pelo trabalho que vem desempenhando no Ibama em Rondônia. Um beijo meu amigo dos tempos em que ainda tentei ser analista ambiental!

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